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Empresas, afetos e legados


​Anos atrás, o então presidente da Alpargatas, Márcio Utsch, destacou uma das tarefas a que se impunha como CEO da centenária fabricante de calçados: reunir-se diariamente com seu diretor financeiro. Para quem pilotou a companhia em um longo período de crescimento, encabeçado pela internacionalização da marca Havaianas, seu carro-chefe, o encontro cotidiano poderia parecer uma formalidade insossa e, quiçá, desnecessária. Não para ele, que justificava: “balanço não quebra empresa; caixa, sim”.

Figuras assim, como Utsch, encarnam à perfeição o papel de gestores, ao menos na acepção prevista em manuais do management: cuidam do negócio como quem acompanha os sinais vitais de um paciente, sabedores de que qualquer escorregão pode desencadear uma emergência médica (ou empresarial) irreversível. Outros, no entanto, não têm aptidão, paciência ou tempo para essas aparentes miudezas organizacionais, preferindo concentrar-se em atividades, digamos, mais interessantes – e delegar as demais a subordinados. É o caso de dois importantes empresários recentemente biografados.

O italiano Roberto Civita, falecido em 2013, retratado em O dono da banca, de Carlos Maranhão (Cia. das Letras, 2016), e o gaúcho Paulo Vellinho, de O realizador de um sonho chamado Springer, de Mario de Santi (Fronteira, 2018), assemelham-se não apenas por terem sido contemporâneos (nasceram em 1936 e 1927, respectivamente), tampouco por estarem entre os pioneiros em seus ramos de atuação no país, a indústria editorial e a fabricação de eletrodomésticos. A similaridade que mais chama a atenção está na maneira de comandar seus negócios – e nas consequências que ela acarretaria para ambos.

Comecemos por Civita. Convocado a juntar-se à empresa do pai, a incipiente Editora Abril, em meados da década de 1950, Roberto Civita importou o modelo de revistas norte-americanas de sucesso e desempenhou com gosto o papel de criador de novos títulos, publisher e relações públicas da Abril. Em mais de meio século de empresa, ampliou o leque editorial da companhia, multiplicando a quantidade de revistas, fez de Veja uma publicação influente e tornou-se interlocutor frequente de seus pares da iniciativa privada e de próceres do poder público. Vellinho, por sua vez, promoveu uma guinada em um pequeno comércio de equipamentos de refrigeração sediado em Porto Alegre, transformando-o em uma das primeiras indústrias de bens de consumo do Brasil. Da Springer saíram alguns dos objetos de desejo típicos da classe média nacional da metade do século passa-do: ares-condicionados, televisores e refrigeradores. Fez parcerias com companhias dos Estados Unidos e do Japão, importando marcas e tecnologias inéditas, e investiu pesada-mente em marketing e publicidade. Ganhou especial notoriedade nas entidades de classe que comandou, entre as quais a Federação das Indús-trias do Rio Grande do Sul (Fiergs).

Comum a ambos a absoluta inapetência pelo dia a dia gerencial, aquele que impõe tarefas enfadonhas como analisar planilhas, elaborar orçamentos e encarnar o advogado do diabo, vetando projetos audaciosos– e menos ainda por atribuições mais dolorosas, como demitir (Civita,aconselhado por um consultora reduzir o quadro de funcionários da Abril, alçou-o ao cargo de CEO justamente para que executasse a penosa tarefa da qual não se sentia capaz). Comum aos dois, também, a existência de grilos-falantes familiares que os alertariam, em momentos diferentes de suas trajetórias, sobre a necessidade de se dedicarem mais ao cotidiano comezinho dos negócios: José, pai de Vellinho e acionista da Springer, durante quase toda a vidada companhia; e Giancarlo, filho de Civita convidado a sucedê-lo, pouco antes dos estertores da Abril. Ambos devidamente repelidos.

Talvez o que mais assemelhasse Civita e Vellinho, no entanto, fossem suas motivações. Sonhar, conceber,executar – e ganhar dinheiro, se fosse possível. Suas empresas não eram portadoras de uma ambição material individual, estritamente, e sim de projetos que os permitiam “realizar a sua humanidade”, como diria Delfim Netto. Traço típico de empreendedores, aliás, e presente em alguns dos mais conhecidos de nossa época; é clássica, por exemplo,a frase de Steve Jobs para o executivo John Sculley, quando tentava contratá-lo da PepsiCo para a Apple: “você quer passar a vida vendendo água com açúcar ou mudar o mundo?”. Vellinho e Civita queriam, à sua maneira, mudar o mundo – ou o Brasil, que fosse. No afã de fazê-lo,construíram seus negócios sobre alicerces mais frágeis do que o necessário para sua continuidade, ao menos nas mãos dos controladores originais (hoje, a Springer pertence à Midea, e a Abril, em recuperação judicial, ao empresário Fábio Carvalho).

Qual a importância de personagens como os biografados? Quase 15 anos atrás, Henry Blodget, um ex-analista financeiro de Wall Street, escreveu que bolhas de investimento, como a das pontocom no início dos anos 2000, embora malvistas pela opinião pública, ajudam a pavimentar o caminho para a construção de setores inteiros através dos primeiros investimentos em infraestrutura e tecnologia. As trajetórias de Civita e Vellinho talvez mereçam ser vistas por prisma parecido. A Springer foi pioneira ao adotar o formato de montadora, e não fabricante, e fez parcerias importantes com a norte-americana Admiral e a japonesa Panasonic que ajudaram a aportar tecnologias e a elevar os padrões de qualidade da indústria local. A Abril não apenas reproduziu com sucesso de fórmulas de revistas norte-americanas, como encorajou o nascimento de concorrentes e, portanto, de toda uma indústria editorial, além de se constituir numa verdadeira escola de jornalismo – a redação de Veja dos anos 1970 e 1980 até hoje é celebrada como uma espécie de dream team do ofício.

Méritos desse naipe, contudo, são vistos com reserva compreensível pela administração de empresas atual, mais racional e menos romântica. O conceito de governança corporativa, especialmente relevante para companhias de capital aberto, conquanto não despreze o papel de lideranças empreendedoras, propõe fortalecer o arcabouço institucional que cerca o CEO, de modo a assegurar que sua atuação se dê dentro de parâmetros mínimos tidos como fundamentais para a saúde organizacional. Uma intenção que colide com o personalismo e a autonomia quase total com que os biografados comandaram seus negócios, porém mais apropriada para assegurar aquilo que o management entende como o objetivo central de qualquer organização: a perenização.

Os livros sobre Civita e Vellinho guardam a virtude de humanizar personagens dos negócios, escancarando o impacto dos afetos sobre a atuação de executivos – o fato de evitar temas espinhosos e o entusiasmo pela novidade nada mais são do que traços de personalidade. E sugere que ambos foram protagonistas deu m aparente paradoxo: ofereceram um legado precioso que ultrapassou as fronteiras das empresas que comandaram,sem, no entanto, terem sido capazes de eternizá-las em suas próprias mãos.

Coluna Sr. Consumidor, publicada em Revista Amanhã, ed. 330

Coluna Sr. Consumidor, publicada em Revista Amanhã, ed. 330

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