Mãos e mentes (perigosamente) ociosas
- André D'Angelo
- 6 de out.
- 4 min de leitura
Atualizado: há 3 horas
Trabalhos manuais e intelectuais estão em vias de extinção?
Na edição de abril de Francisca (n. 57), o engenheiro aeronáutico Lucas Puttini (foto) publicou um depoimento interessante. Cansado da vida corporativa e frustrado com a natureza abstrata do próprio trabalho, há dez anos ele se tornou marceneiro na região de Joinville. Desde então, relata, passou a se sentir desafiando o corpo todo numa atividade, a se orgulhar do que produz e a desfrutar do prazer de saber-se apto a manufaturar seus próprios objetos, em vez de comprá-los prontos, num antídoto contra a dependência do consumo.
Tão logo li o texto de Puttini, lembrei-me de outros dois casos semelhantes. Um, o do PhD norte-americano Matthew B. Crawford, que em 2009 publicou livro(i) em que narra a saga de trocar o emprego num centro de pesquisas pelo de mecânico de motocicletas antigas, atividade na qual encontrou a verdadeira realização – valendo-se de argumentos semelhantes aos do joinvilense adotivo, aliás. E o do falecido publicitário brasileiro Alex Periscinoto (1925-2021) que, em suas memórias, reconhecia sentir um vazio nos dias fora do escritório, sentimento combatido com a montagem de uma pequena marcenaria dentro de casa, onde confeccionou, durante anos, patos e cavalos de madeira, os quais presenteava a amigos.
Das propriedades terapêuticas do trabalho manual, já se ouviu falar. Tanto que volta e meia surge uma trend nas redes sociais de jovens dedicados ao crochê, tricô, livros de colorir e coisas assim. Mas de sua importância coletiva, para a sanidade de uma sociedade como um todo, não. E é aí que o “Manifesto Artesão” publicado em Francisca, além dos outros exemplos mencionados acima, ganham outra dimensão.
Segundo a neurocientista Kelly Lambert, “nosso estilo de vida contemporâneo, cômodo (...), pode estar contribuindo para o aumento dos índices de depressão”. O motivo? “[N]osso cérebro é ‘programado’ para experimentar profundo senso de satisfação e bem-estar quando o esforço físico produz algo tangível, visível e significativo na obtenção de recursos necessários para a sobrevivência”(ii) - mais ou menos como a gratificação narrada por Puttini, Crawford e Periscinoto em seus testemunhos. “Pensemos nas recompensas impulsionadas pelo empenho como uma ferramenta evolutiva”(iii), continua ela. “Mesmo que o estilo de vida tenha mudado radicalmente, retivemos a necessidade inata”(iv) de conquistá-las pelo esforço.
Trata-se de uma conclusão curiosa e preocupante. Curiosa porque todo o emprego de engenho humano, ao longo da História, esteve voltado a tornar as tarefas diárias menos custosas e braçais, libertando corpos, mentes e espíritos para ocupações tidas como mais nobres e “humanas”, sempre ligadas ao desenvolvimento intelectual e emocional. Quem não lembra da teoria do ócio criativo(v) de Domenico de Masi (1938-2023), por exemplo? Ou, na mesma época, da aurora do chamado capital intelectual, exaltada pelo jornalista econômico Thomas Stewart(vi)? Uma sociedade como a imaginada por ambos só seria possível se o trabalho doméstico e os muitos ofícios práticos de que dependem escritórios, fábricas e outros estabelecimentos pudessem ser mecanizados ao extremo ou tornados dispensáveis por algum milagre. E isso, apesar de aparentemente desejável, não nos tornaria mais felizes.
Preocupante porque, se a hipótese de Lambert estiver correta, está-se em um caminho sem volta e em vias de ampliação. Afinal, seu artigo tem quase 20 anos e não contempla uma evolução tecnológica que, hoje, ameaça até mesmo o contentamento derivado de empreitadas criativas e intelectuais. Com o avanço da Inteligência Artificial (IA), sintetizar grandes volumes de conteúdo, redigir textos técnicos ou elaborar imagens artísticas pode ser terceirizado para um computador – deixando não apenas corpos ociosos, mas cérebros também. E com um agravante: se a “solução” apontada para reverter o declínio das habilidades manuais seria reinseri-las nos currículos escolares, a de tentar reforçar estímulos intelectuais no dia a dia de crianças e adolescentes se mostra fadada ao fracasso, pois a IA já é amplamente utilizada em colégios e universidades.
E não por acaso. Embora nos sintamos sem valor quando ociosos, colocar a imaginação e a inteligência para produzir algo que uma máquina faria igual ou melhor (e mais rapidamente) tende a ser desestimulante, tanto quanto costurar suéteres, preparar um almoço ou construir móveis que poderiam ser comprados em questão de minutos. Tem de haver algum prazer intrínseco em certos afazeres a ponto de nos mobilizarem de maneira contínua, permanente, e não apenas esporádica, a título de hobby. “Como as pessoas descobrirão seus talentos, ou as recompensas advindas da expertise, se não veem muito incentivo em desenvolvê-los?”(vii), pergunta-se o jornalista Derek Thomson.
Pois é – desse problema, pelo menos, Lucas Puttini escapou.
i “Shop Class as Soulcraft: An Inquiry Into the Value of Work” (Penguin Press). O autor publicou também um artigo, com este mesmo título, na revista The New Atlantis em sua edição de verão de 2006.
ii “Depressingly Easy”, Scientific American Mind, Aug./Sep; 2008, p. 32-33.
iii Idem, p. 34.
iv Ibidem.
v “O ócio criativo” (Sextante, 2004).
vi “Capital intelectual” (Campus, 1997).
vii “A World Without Work”. The Atlantic, Jul./Aug. 2015.
Artigo originalmente publicado na revista Francisca, nº63, de outubro de 2025.
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