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Razão e sensibilidade

Se a história é escrita pelos vencedores, a das últimas três décadas do universo empresarial brasileiro não poderia ter melhores redatores. O mineiro Vicente Falconi, consultor em produtividade e qualidade, e o gaúcho José Galló, executivo-chefe das Lojas Renner, tiveram suas biografias profissionais lançadas no ano passado. A de Falconi ficou a cargo da jornalista Cristiane Correa e ganhou o nome de Vicente Falconi: o Que Importa é Resultado (ed. Primeira Pessoa). A de Galló saiu de sua própria pena e chama-se O Poder do Encantamento (ed. Planeta). Os títulos são bastante fieis ao que o leitor encontrará nas páginas de uma e de outra.

Falconi é o embaixador nacional dos métodos de qualidade total popularizados pela indústria japonesa nos anos de 1970 e 1980. Foi responsável por implementá-los em ramos tão diversos quanto os de bebidas, siderurgia e transporte ferroviário, tornando-os mais competitivos e aptos a sobreviver à concorrência global. Auxiliou o gabinete de crise do governo federal durante o apagão de 2001 e tornou-se unha e carne com os controladores do fundo 3G Capital, que põem em prática seus programas de redução de perdas em todas as companhias que adquirem por aí – o que já incluiu a cervejaria Anheuser-Busch, a fábrica de ketchups Heinz, a cadeia de fast food Burger King e a América Latina Logística. Não é exagero dizer que a cultura meritocrática e agressiva de Jorge Paulo Lemann e sócios não teria o mesmo sucesso se Falconi não os tivesse convencido, lá no princípio dos anos 1990, de que produtividade e qualidade derivam da capacidade de identificar os melhores procedimentos e repeti-los à exaustão, em uma espécie de sacerdócio antidesperdício, seja ele de tempo, dinheiro, matéria-prima ou esforço. Nem Falconi seria o mesmo caso não tivesse passado a enxergar o resultado financeiro como indicador-mor da saúde de um negócio, crença professada desde sempre pelo 3G.

Falconi, portanto, é o lado hard da administração de empresas, o sujeito racional que a vê como uma combinação daquilo que se faz no chão de fábrica e na tesouraria, e que acaba refletido no tal resultado que dá título à sua história. Seu método representa disciplina, contenção, rotina, repetição, respeito às regras e aos fatos: tudo tão pouco brasileiro que chega a surpreender que tenha funcionado por aqui, o que mostra o potencial escondido pelos cantos deste país – ou como a coerção empresarial é eficaz, caso prefiram os menos otimistas.

José Galló por sua vez, encarna o lado soft da gestão, tida como um desafio que exige a sensibilidade do executivo. A transformação das Lojas Renner de uma pequena cadeia gaúcha na mais robusta rede brasileira de varejo de moda foi repleta, claro, de tensão e trabalho duro, mas, segundo conta seu CEO desde 1991, constantemente conduzida por uma crença em dois fundamentos típicos de áreas menos áridas dos organogramas: marketing e recursos humanos. Da primeira, Galló trouxe a necessidade de encantamento do cliente; da segunda, a importância da satisfação do funcionário com a própria atividade e a empresa em que atua. A bem-sucedida trajetória da Renner seria então resultado de uma preocupação com seu público-alvo prioritário, as mulheres, e com sua, digamos, clientela interna, os colaboradores. Gente, em última análise, e não números ou descrições de processos.

Ambos, Falconi e Galló, evidentemente, não descartam a relevância de seus opostos, sabendo que yin e yang se completam. O primeiro é enfático ao dizer que “70% do sucesso de uma empresa é gente” e registra no livro que o avanço da Brahma se deveu também à sua eficiência em vendas, e não apenas em custos, ainda que igualmente amparada nos preceitos da qualidade total. O segundo, embora evangelista do marketing e das pessoas, tem sólida formação financeira, forjada na FGV-SP, e reconhece o mérito da consistência estratégica e da operação azeitada ao lançar mão de uma metáfora, a de que é necessário assentar um tijolo por dia – desde que sempre de mesmo tamanho e formato – e ao lembrar que os valores das empresas se parecem, mas o que faz a diferença é a capacidade de implementação. Contudo, é forçoso reconhecer que a receita de Falconi é mais universal que a de Galló, visto que testada e aprovada em setores diversos e em todo o mundo, enquanto a do gaúcho circunscreve-se a uma jurisdição mais específica e a personagens bem determinados.

Além disso, a ênfase de Galló no que julga ser o diferencial da empresa que comanda esconde a provável origem do crescimento da Renner: a laboriosa tarefa de comprar barato, escolher bons pontos comerciais, abastecer as lojas com mercadorias adequadas, criar coleções que caiam no gosto do público etc. Ou seja, a boa execução da rotina típica do setor em que atua, aquela mesma que, a despeito de todo lip service em prol da inovação, é a que faz vitoriosa uma companhia, como frisa Falconi. Por isso, arrisco dizer que há mais dos princípios deste último na performance da Renner do que dos de Galló na das companhias que o consultor mineiro atendeu. O encantamento é a exceção, mesmo que some supostos 800 mil episódios documentados em mais de 25 anos de Galló na Renner, segundo o livro; o dia a dia bem feito, a regra.

Livros de trajetórias empresariais sempre estimulam a generalização das pretensas lições que oferecem. Da leitura de ambos sai-se com a sensação de que, se há uma receita para o sucesso, Falconi e Galló a descobriram e a compartilham generosamente ao longo de centenas de páginas, ainda que a vida real pareça desmentir tal pretensão. A BRF, por exemplo, recentemente cogitava passar por um processo de “desfalconização”, em virtude de seus maus resultados; e a Renner, em que pese toda a retórica de seu CEO sobre a importância das pessoas, não tem fama de melhor ou pior empregadora do que qualquer outra grande empresa brasileira. Nenhuma surpresa aí: toda experiência humana deixa como legado a duvidosa capacidade de explicar a si e ao mundo exclusivamente pelo conjunto de fatores que nela intervieram, uma evidente limitação da qual dificilmente escapamos – e que na administração parece ser a constante na tentativa de entender resultados bons, ruins ou mais ou menos. “Quando os padrões de fracassos [de gerentes] (...) são examinados (...) são tão contraditórios que assustam. (...) Os gerentes se envolvem em detalhes demais – de menos. São cautelosos demais ou destemidos em excesso. São excessivamente críticos ou receptivos. (...) Planejam e analisam e procrastinam ou então pulam às cegas, (...) sem (...) análise ou planejamento” (Skinner e Sasser, Harvard Business Review 55(6), 1977, p.142, citados por Henry Mintzberg em “Managing”, ed. Bookman, 2010, p. 204).

Um ditado oriental afirma que “os homens fazem planos e os deuses acham graça”. Se os deuses da gestão existem e frequentam os cubículos dos escritórios pelo mundo, é bem provável que assistam a consultores e executivos prescreverem e consumirem receitas de sucesso empresarial – e apenas esbocem um sorriso no canto da boca.

Coluna Sr. Consumidor, publicada em Revista Amanhã, ed. 327, Junho/Julho 2018.

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