Um esporte de combate
- André D'Angelo
- 21 de jun.
- 3 min de leitura
Por que tanto medo das paixões políticas?
Durante a Idade Média, paixões amorosas eram consideradas patológicas, a ponto de ameaçarem a ordem pública e a estabilidade das relações sociais. Padres e médicos intervinham, chamados por parentes e amigos dos “enfermos”, para prescrever distrações e viagens, quando não aplicar uma curiosa tática de elencar os defeitos da pessoa amada a fim de vê-la sob uma ótica menos benevolente (O Globo, 18/06/2023).
Se os historiadores do futuro se debruçarem sobre a época atual, provavelmente também enxergarão com interesse o temor que algumas paixões têm despertado entre nós – mas não as de natureza amorosa, e sim as de cunho político. E acharão curioso que boa parte da mídia internacional tenha definido como “deliciosamente tediosa” a última eleição presidencial uruguaia (24/11/24), em virtude do histórico moderado dos candidatos e da brandura das rivalidades partidárias, bem diferentes daquilo que se tem observado nas Américas e na Europa desde meados da década passada.
Ora, se as paixões políticas foram a tônica de todo o século 20, por que receá-las agora? Há por acaso consensos tão abrangentes permitindo que sejam dispensáveis o engajamento e a intensidade das emoções investidas nas questões da vida pública?
Uma hipótese. Nas entrelinhas da tese do fim da história, proposta por Francis Fukuyama nos anos 1990, estava a ideia de que as tensões políticas amainariam por meio da imposição quase natural da democracia liberal. Sem modelos opostos para brandir, defensores de um lado e de outro tenderiam a uma convergência favorável à estabilidade institucional e, claro, à governança econômica.
A queda do muro de Berlim e a fragmentação da antiga União Soviética, pretextos para o argumento de Fukuyama, ocorreram de maneira concomitante à ascensão daquilo que foi apelidado de neoliberalismo, uma doutrina que encarna “a nova razão do mundo” (Dardot & Laval, 2017) – uma lógica inconteste, indisputável, alheia aos sentimentos. Em seu corolário, não apenas o socialismo seria uma utopia juvenil indefensável, como a moderada social-democracia (e a já esquecida “terceira via”, sua sucessora), uma ingenuidade de quem não aceita a vida como ela é em sua dureza meritocrática. Ao espantar idealismos e voluntarismos bem-intencionados, o neoliberalismo visaria aplainar as paixões políticas em nome de uma pretensa neutralidade. Errar com Sartre já não era uma opção; acertar com Aron, sim.
Tendência reforçada pelo caldo cultural instalado desde o pós-guerra. Quando triunfa a economia de mercado, abre-se o caminho para a vigência de uma cultura de consumo que traduz a cidadania em acesso a bens e serviços e naturaliza a narrativa publicitária da acomodação, do superficialismo, da infantilização e dos bons sentimentos, soando agressiva qualquer subida de tom. Como se a história não fosse uma sucessão de tons acima em disputa.
O papel da política é moderar as emoções e lhes emprestar racionalidade, equilíbrio e direção. Pretender que desapareçam do espaço público não é factível nem desejável. Por mais afloradas que às vezes se apresentem, são um sinal de disposição em participar dos assuntos de interesse coletivo, e certamente menos danosas a uma democracia do que a
indiferença e a anomia. Não se pode prescindir da energia mobilizada pelos afetos – não, ao menos, aqui, onde tudo está por fazer.
Pierre Bourdieu (1930-2002) dizia que “a sociologia é um esporte de combate”. Faz sentido pretender que a política seja diferente?
Artigo originalmente publicado no Diário de Santa Maria, em 19 de junho de 2025.
Comentários