Descoberta da América
- André D'Angelo
- 30 de abr.
- 3 min de leitura
Com Donald Trump, caem mitificações sobre os Estados Unidos
“Ninguém deveria ter medo de dizer o que pensa, seja para a direita, seja para o centro ou para a esquerda. É assim, por exemplo, nos Estados Unidos, onde o CEO de uma grande empresa assume uma posição abertamente democrata ou republicana. Se o governo tentar, de alguma forma, persegui-lo por isso, é mais fácil que o governo caia do que ele seja efetivamente vítima de algum revanchismo”.
Aguardasse alguns meses para lançar sua autobiografia profissional (“A busca”, ed. Citadel) e talvez o empresário Jorge Gerdau Johannpeter repensasse o parágrafo acima, que ocupa parte das páginas 95 e 96. Publicada em dezembro do ano passado, a obra praticamente nasceu com o trecho desatualizado, visto que Donald Trump assumiu a presidência norte-americana logo depois e mudou bastante as regras do jogo com as quais empresas, mídia e políticos estavam acostumados.
Aliás, antes mesmo de 20 de janeiro, data da entronização oficial, já havia sinais nesse sentido, devidamente captados pelos grandes magnatas da tecnologia. Estes começaram a recuar de certas posições progressistas e ajudaram a custear a cerimônia de posse do republicano – e, claro, fizeram questão de se fazer presentes. Os motivos? Temores quanto a um processo antitruste (contra a Meta, de Mark Zuckerberg) e bilhões em contratos estatais em jogo (da Amazon Web Services e da Blue Origin, ambas de Jeff Bezos: Folha de S. Paulo, 20 mar. 2025). Hoje, nas palavras de um articulista do Financial Times, o “establishment político dos EUA está com medo da própria sombra”, pois “se um CEO se pronunciar, essa empresa será punida” (18 mar. 2025).
Motivos para manifestações indignadas não faltariam, e vão bem além das já famosas tarifas de importação, que praticamente fecharam o mercado norte-americano para alguns países (e o dessas nações para exportadores dos EUA). A exigência de reversão das políticas DEI (diversidade, equidade e inclusão) em órgãos públicos federais e empresas privadas fornecedoras de serviços ao governo são mais intromissivas ainda. E vieram completadas por campanhas públicas e ameaças de boicotes por parte de influenciadores alinhados ao trumpismo. Foi assim que Walmart, Target, Alphabet (Google), Disney, Ford, Caterpillar, McDonald’s, Victoria’s Secrets e Boeing suavizaram, extinguiram ou deixaram de mencionar em seus sites oficiais iniciativas dessa natureza (Folha de S. Paulo, 06 mar. 2025; El País Espanha, 28 mar. 2025; Você RH, abr. 2025). Apenas a Apple as manteve intocadas (The Guardian, 25 fev. 2025), não sem rosnados presidenciais (O Globo, 26 fev. 2025).
Os episódios mais recentes envolveram as universidades, públicas e particulares, instadas a repreender manifestações tidas como antissemitas, suprimir linhas de pesquisa “woke” e reverter ações afirmativas, sob pena de cortes orçamentários (Folha de S. Paulo, 20 abr. 2025). E um processo de US$ 10 bilhões contra a rede de TV CBS em função de uma entrevista com Kamala Harris, durante a campanha presidencial do ano passado, e que já rendeu a renúncia do editor-chefe do famoso programa jornalístico 60 Minutes, indisposto a ceder às pressões editoriais dos patrões amedrontados (El País Espanha, 22 abr. 2025).
Não foi somente Jorge Gerdau, contudo, que deve ter sido pego de surpresa. Todos aqueles que acreditaram que a democracia americana seria “à prova de idiotas”, que há pouca influência de Washington na vida dos cidadãos, que sua imprensa é perfeitamente livre ou que suas maiores universidades vivem de filantropia, mensalidades e patentes (e jamais dinheiro público), também foram. Até mesmo as críticas a Joe Biden, antecessor de Trump, foram reveladoras: seus projetos de longo-prazo, especialmente infraestruturais, empacaram na burocracia, nas exigências ambientais, nas consultas públicas e no temor de litígios, de modo a não serem colhidos como dividendos eleitorais. Os EUA estariam presos a “um conjunto constante e crescente de obstáculos para fazer qualquer coisa rapidamente”, segundo um ex-integrante da administração democrata (NYT, republicado pela Folha de S. Paulo, 15 abr. 2025).
Por tudo isso, os 100 primeiros dias de Trump na presidência dos Estados Unidos equivalem a uma redescoberta da América. A liberdade de expressão e o dinamismo econômico invejáveis dependiam menos de uma arquitetura institucional avançada do que de um acordo político tácito, passível de ser rompido a qualquer momento pelo governante de turno. Seu teste definitivo ocupará cada um dos 1.360 dias restantes de mandato: é mais provável que o presidente caia ou que descontentes continuem sendo alvo de retaliação?
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