As histórias da arrogância
- André D'Angelo
- há 3 dias
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Aqueles que pretendem viajar para o Hemisfério Norte em 2025 devem se preparar não apenas para dólar e euro caros, temperaturas inversas às brasileiras e idiomas diferentes. No combo atual, uma dosezinha de hostilidade dos moradores dos principais destinos turísticos do mundo contra seus visitantes não está descartada.
O motivo? O overtourism (turismo excessivo), que há alguns anos tem transformado a vida de certas cidades em sinônimo de preços elevados, dificuldades de deslocamento, sujeira pelas ruas e barulho até altas horas da madrugada. Suas principais causas são a superoferta de imóveis para aluguel de curta temporada, como o Airbnb, a popularização dos cruzeiros, que despejam milhares de passageiros de uma única vez para um dia de passeio nos principais polos, a demanda reprimida dos anos de pandemia e a súbita popularidade de locações de séries e filmes famosos.
Entre os remédios previstos pelas administrações municipais estão aumentar preços de taxas, proibir aluguéis inferiores a uma semana e vetar o aumento de vagas na hotelaria. Em última análise, tornar o turismo mais “seletivo” e “qualificado”, para usar as palavras dos burocratas.
É curioso o paradoxo que vive a sociedade de consumo. Quanto mais torna acessíveis bens ou serviços antes restritos a poucos, mais danos colaterais causa. Ao perseguir seus ideais de livre trânsito de pessoas e de mercadorias, chega a um ponto de inflexão que flerta com a inviabilidade - e que só encontra resposta em um valor francamente contrário ao seu, a elitização.
Em “História da Arrogância” (ed. Axis Mundi, 1999), o sociólogo italiano Luigi Zoja trata o crescimento econômico como um mito que alimenta as sociedades ocidentais desde a Revolução Industrial e, em nome do qual, cometem-se crimes ecológicos e se empobrece a vida psíquica e comunitária. A húbris citada no título é justamente a ilusão humana de controle do mundo e submissão da natureza, geradora de um sentimento de culpa coletivo que caracterizaa o mal-estar da civilização atual.
Faz sentido. Mas pode-se enxergar o fenômeno sob outro ângulo. Agora, a arrogância reside não na falta de limites os quais o ser humano se arrogou, mas, ao contrário, na imposição deles: erguer barreiras a pretexto de preservar a funcionalidade do próprio sistema. Fechar as portas do salão quando a maior parte dos convidados está prestes a ingressar remonta a tempos pré-modernos da sociedade de castas e das leis suntuárias. Simboliza não apenas o fracasso de um modelo que só produz riqueza às custas da destruição, mas também que se mostra incapaz de resolver seus impasses sem retornar a um passado ao qual nasceu para se opor. Como se, em vez da linha progressiva infinita que ambicionava constituir, tomasse, agora, uma forma circular, insolúvel.
E a que só restasse consolar as massas impedidas de transitar pelo globo evocando Sêneca (4 a.C.-65 d.C.): “Fuja da agitação dos deslocamentos. O primeiro sintoma de uma alma bem ordenada é estabelecer-se num determinado lugar”.
Será que convence?
Artigo originalmente publicado no Diário de Santa Maria, de 27 de maio de 2025.
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