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Estátuas e cofres

Se o mundinho do management fosse dado ao costume de erguer estátuas para seus heróis, tal como volta e meia faz o poder público, uma, certamente, teria sido erigida em louvor a Jack Welch, o lendário CEO que comandou a GE por duas décadas (1981-2001). Restaria saber, contudo, se hoje ela ainda estaria de pé ou se teria sucumbido à onda revisionista que acomete a história oficial em vários cantos do mundo – e que parece ter saudavelmente chegado à administração, também.


Morto em março de 2020, dezenove anos depois de sua aposentadoria, o “gestor do século 20”, como apelidaram-no as revistas especializadas, teve o passamento ofuscado pelo início da pandemia de Covid-19 no Ocidente, o que não impediu que seu obituário fosse tão repleto de adjetivos laudatórios quanto de ressalvas pertinentes -–numa prova de que, mesmo nos negócios, em que a última linha do balanço tem a palavra final, somos todos escravos do nosso tempo.


Senão, vejamos. Os galardões que Welch ostentou por quase quatro décadas foram o de aumentar o valor de mercado da GE em trinta vezes, dar autonomia a subordinados, acabar com uma estrutura inchada ao demitir 112 mil trabalhadores e instilar em seus comandados a “paixão por vencer” – título em português, aliás, de sua autobiografia (e que, olhando em retrospectiva, poderia ser definida como a primeira hashtag motivacional analógica). Tudo isso preciosamente embalado em frases de efeito que o tornariam personagem ideal para a nascente indústria do business, aquela formada por revistas, seminários e livros que cotidianamente se esmera em fazer da administração de empresas um produto tão espetaculoso quanto os esportes profissionais e a vida das celebridades.


Seus feitos, no entanto, valeram-se de uma era de liberalização e financeirização da economia americana, a mesma que redundou no crash de 2008 e levou consigo boa parte do valor de mercado da GE, hoje menos de um quarto daquele alcançado nos tempos áureos, e que culminou em processos contra o braço financeiro do conglomerado devido à sua contabilidade obscura.


Como se não bastassem as restrições acima, de natureza objetiva, outras somaram-se desde que Welch se retirou do dia a dia. Seu pacote de benefícios pós-aposentadoria, que incluía apartamento luxuoso em Manhattan, despesas pessoais pagas pela empresa e camarotes em eventos esportivos, foi visto como quase imoral, a ponto de, tão logo tornado público, tê-lo levado a renunciar às mordomias, reembolsar a companhia e emitir um providencial pedido de desculpas. E não só. Desde então, mercado e academia têm questionado os bônus dos executivos, geralmente vinculados a resultados de curto prazo, bem como a ética dos downsizings pensados para afetar o valor imediato das ações à custa de empregos, ambos tão em voga nos tempos de Welch.


O real papel dos CEOs sobre os resultados das empresas também andou sob escrutínio nesse período. Estudo de dois pesquisadores a respeito concluiu ser impossível antecipar a performance de um executivo-chefe a partir de seu retrospecto profissional, como também não encontrou respaldo na suposta superioridade técnica dos egressos dos MBAs mais famosos, sugerindo que “muitas das características que atribuímos na hora de selecionar, promover e desenvolver são enviesadas por aspectos evolutivos ou culturais”, e que “estamos exagerando em creditar à liderança a causa do sucesso das organizações”, conforme resumiu o brasileiro Claudio Garcia, professor de gestão da Universidade de Nova York, em comentário acerca do assunto (Valor Econômico, 28/01/2021).


O estilo midiático de Welch e seus pares de mesmo perfil igualmente não passaria ileso pela recente valorização dos executivos discretos e introvertidos, capazes de, segundo alguns teóricos, entregar melhores resultados às companhias que dirigem, nem à cobrança para que seus legados como gestores ultrapassem a mera lucratividade e incluam benefícios socioambientais. Finalmente, a era das startups pôs lente de aumento no trabalho em equipe, relativizando a figura do líder, que começou a ser julgado mais pela capacidade de “inspirar” subordinados do que de comandá-los, propriamente.


Em pelo menos uma de suas habituais analogias, porém, a indústria do business show tem lá sua cota de razão. Os negócios são, sim, comparáveis à guerra e aos esportes profissionais. Não pelo suposto heroísmo exigido de tarefas tão díspares, como querem dar a entender animadores corporativos, e sim porque em trincheiras, quadras e escritórios, quem escreve a história oficial são os vencedores – dos quais Jack Welch e GE (foto acima) foram os mais notórios no fim do século 20. O que não quer dizer que só exista uma versão da história, como fazem questão de mostrar as turbas insurgentes que, na Europa e nos Estados Unidos, já puseram abaixo meia dúzia de estátuas desde o ano passado, lembrando-nos de que a biografia pública de um grande político ou comerciante não raro omite um escravocrata ou misógino. Lee Iacocca (1924-2019), que foi de inepto a genial na indústria automobilística norte-americana, e Carlos Ghosn, que virou herói de mangá no mesmo Japão onde acabaria preso, que o digam.


O que se conclui dessa primavera revisionista? Para além daquelas ideias já solidificadas no campo da História e da Ciência – a de que o passado é fruto do presente e de que todas as certezas são provisórias, respectivamente –, sai fortalecido o papel da academia como curadora de um dos conhecimentos possíveis em administração. Não de um conhecimento gerador ou guardião de pretensas verdades, que, sabe-se há muito, não existem no management, mas daquele oriundo do distanciamento crítico, tão mais afeito a pesquisadores e professores do que aos atores do teatro organizacional. “A admiração é inimiga mortal da compreensão”, dizia o crítico literário Otto Maria Carpeaux, como se alertasse por tabela os fãs incondicionais que, de tempos em tempos, caem de amores por modas e manias gerenciais.


Por isso, aos estudiosos da administração cabe adicionar asteriscos e reticências aos pontos de exclamação que a plateia corporativa vai emprestando a pessoas, técnicas e empresas nos LinkedIns da vida, em um alerta de que, embora o ofício de gerir organizações sequer exija diploma, o autodidatismo conserva lá seus perigos e handicaps. Ou, para ficar nas analogias estatuárias, aos academicians é reservado o nobre dever de fazer coro a Mario Quintana e lembrar a todos nós de que “um erro em bronze é um erro eterno”.


Artigo originalmente publicado na coluna Sr. Consumidor, Revista Amanhã, ed. 337.



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