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O marketing e seus seguidores

Somos todos nós


O filósofo Luiz Felipe Pondé afirma que o marketing é a grande tecnologia contemporânea, dada a capacidade de vincular a produtos e serviços ideais de realização e transcendência. Segundo seu raciocínio, tudo o que a filosofia ou a religião ofereciam por meio da reflexão e da ritualização mágica passou a ser prometido em anúncios de TV e gôndolas de supermercado. Os consumidores não passariam de um contingente anônimo iludido de que promessas não materiais pudessem ser cumpridas numa voltinha pelo shopping – desde que detivessem os meios materiais para tanto, claro.


Gosto da provocação de Pondé e vou um pouquinho além. O domínio do marketing tem sido tamanho desde a segunda metade do século passado que sua principal ferramenta, a publicidade, da qual é tratado como sinônimo pelos leigos, acabou abraçada pelas pessoas comuns em suas vidas privadas. Basta uma rápida olhada nas redes sociais.


Nelas, recursos típicos da propaganda são utilizados para construir a narrativa de vidas banais. A evolução da popularidade das redes, aliás, emula a da própria publicidade: no princípio era o Facebook, em que predominava o texto. Este, tal qual nos reclames, tinha a missão de transformar trivialidades do cotidiano em momentos épicos. Depois, passou-se ao Instagram, em que predomina a imagem, devidamente tratada por filtros e efeitos, edulcorando a realidade. Finalmente, o momento pertence ao TikTok, em que reina a performance: é preciso entreter a plateia por breves segundos, como na indústria do espetáculo.


Todas as plataformas produziram suas próprias figuras de proa, os influenciadores, que nada mais fazem do que provocar nos indivíduos comuns aspirações de semelhança, tanto quanto as celebridades midiáticas.


Até mesmo a permeabilidade típica do marketing às causas do momento foi mimetizada pelo usuário típico, interessado em salpicar de bons sentimentos suas egotrips diárias. Ataque terrorista em Paris? “Je suis Charlie Hebdo.” Desastres ambientais? “Somos todos Brumadinho.” Tudo com uma simples troca da foto de perfil.


A analogia não para por aí.


Como resposta ao “Fakebook” (a vida editada, só com as partes boas) e à “síndrome de Sandy” (a preparação e a edição de imagens), surgiram os pretensos pregadores da autenticidade e do combate aos ideais de perfeição que inundaram as redes. Relatos sincerões de aborrecimentos comezinhos, autoderrisão, fotos não manipuladas, dia a dia de profissões invisibilizadas etc. Nada muito diferente da pregação que pedia pessoas “normais” em comerciais e programas de televisão lá pelos anos 1990 e 2000. Seu efeito prático? Bem, os canadenses Joseph Heath e Andrew Potter já mataram a charada há muito tempo em Rebel Sell (“Rebeldia à venda”, numa tradução livre), livro de 2004 sem edição em português: o mercado se alimenta menos da conformidade do que da rebelião. Bons negócios esperam aqueles que engrossam o suposto coro dos descontentes.


Há duas maneiras concorrentes de interpretar o fenômeno, a meu ver. A primeira, à la Escola de Frankfurt, vê a incorporação de cacoetes publicitários à vida privada como uma prova cabal do poder deletério das tecnologias do imaginário sobre as subjetividades, irreversivelmente colonizadas e fadadas à reprodução. Dotado das mesmas armas que “o sistema” – os meios de comunicação, no caso –, o cidadão nada mais fez do que replicar seu modus operandi, dando vazão a um desejo represado: o sonho da plateia era mesmo subir no palco.


Outra, mais ao gosto dos militantes da área de marketing, isenta a disciplina de pecados e reforça o que historicamente se afirmou nos corredores das agências de publicidade: esta apenas devolve para a sociedade, de forma estilizada, o que dela absorve. Anúncios sempre foram um espelho, e não uma forja, do que se via e ouvia nas ruas – tanto que, de posse de seus canais de mídia particulares, delas emergiu nada muito diferente daquilo que os comerciais de 30 segundos exibiram e exibem historicamente. A atividade estaria virtualmente absolvida, enfim.


De ambos os enfoques resta apenas uma certeza: o marketing sai vencedor. Seja como narrativa hegemônica da vida, seja como inocente dos crimes dos quais foi acusado de perpetrar. Se o maior sinal de sucesso de uma doutrina é conquistar adeptos, o marketing tem o que comemorar: seus seguidores somos todos nós.


Artigo originalmente publicado no caderno DOC, de Zero Hora, em 29 de janeiro de 2024.



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