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Outra vida é possível

A simplicidade voluntária propõe uma troca: abdicar de alguns prazeres oferecidos pelo universo do consumo em nome de outras fontes de satisfação, em geral não materiais, e capazes de trazer maiores níveis de bem-estar subjetivo e de tornar a vida mais fácil e prática.

"Naturalização”, nas Ciências Sociais, define a capacidade de indivíduos e grupos de tratarem como naturais – e, portanto, pouco passíveis de reflexão e questionamento – fenômenos eminentemente culturais. Diversos elementos com os quais lidamos no dia a dia,como papéis de gêneros, comportamentos etários, preferências estéticas e escolhas profissionais, são típicas naturalizações– formas internalizadas de pensar e agir que refletem mais a história e o contexto cultural no qual estamos mergulhados do que qualquer desígnio natural pretensamente irreversível ou imutável. Uma naturalização típica dos nossos tempos dá conta de que “mais é melhor”. Ou seja, de que o ser humano, quando confrontado com a escolha entre a abundância e a moderação, irá preferir a primeira:mais dinheiro, mais propriedades,mais objetos e mais viagens seriam a escolha lógica – ou “natural” – de qualquer um. A partir daí, todo movimento ou sacrifício no sentido de perseguir tais objetivos soam perfeitamente aceitáveis à maioria, e, portanto, raramente sujeitos à discussão ou à crítica. Raramente, é bom dizer – e não jamais sujeitos à discussão ou à crítica. Há quem se ponha a refletir se, de fato, o espírito de querer sempre mais faz sentido, e se tê-lo como norte das principais escolhas da vida não constitui,em última instância, a naturalização grosseira de um ideário amplamente difundido no mundo capitalista.

É aí que entra a simplicidade voluntária.Comportamento identificado e batizado nos anos 1970, nos Estados Unidos,e que põe em cheque os valores que historicamente permearam a vida do norte--americano médio, a simplicidade voluntária(que chamaremos, daqui para frente, apenas por SV) não chega a ser propriamente um movimento, no sentido de constituir um grupo organizado e articulado,e sim uma ideia, uma proposta de vida que atrai simpatizantes ao redor do mundo. Seu segredo? Ter sido capaz de identificar uma espécie de mal-estar comum a cidadãos de diferentes países e proposto uma alternativa razoável,visto que flexível e negociada, de transformação.Seu princípio fundamental é que boa parte das pessoas pode ter uma vida mais satisfatória se optar espontaneamente por “limitar gastos com bens de consumo e serviços e cultivar fontes não materialistas de satisfação e significado"

O surgimento e o fortalecimento da SV estão ligados ao crescimento da percepção de que os benefícios materiais oferecidos por uma sociedade afluente não são capazes de compensar os prejuízos incorridos para alcançá-los, como o estresse,a desagregação social, a frustração e a insaciabilidade permanente. Seu ideário promove a defesa de possibilidades diversas de existência dentro de um sistema econômico e social que privilegia um comportamento padrão. Representa, em outras palavras, uma proposta de adaptação do indivíduo ao mundo, sem constituir,no entanto, um conjunto de princípios fechados, imutáveis ou inegociáveis– pelo contrário. Suas ideias não são radicais (propõem apenas consumir menos,e não deixar de consumir, por exemplo)nem politicamente engajadas, ao menos da forma explícita e tradicional.

UM BREVE HISTÓRICO

A simplicidade voluntária foi identificada como um comportamento em ascensão nos Estados Unidos por dois pesquisadores,em 1977. Duane Elgin e Arnold Mitchell, à época em um centro de pesquisas californiano, notaram que, emmeio ao turbulento período político e econômico experimentado pelo país, um contingente crescente de cidadãos procurava uma alternativa de vida que desviava do chamado “sonho americano” e se aproximava de ideais menos populares, como consumo frugal, preocupação ambiental e preferência por ambientes profissionais e sociais menores (more human scale, na expressão dos autores). Um conjunto de crenças e práticas cujas forças motrizes eram majoritariamente individuais, e cujos benefícios principais estariam em permitir maior autonomia pessoal e diminuição da dependência de instituições sobre as quais os indivíduos não exercem controle, como empresas e governo.

Os anos 70, recordemos, constituíram um período de transição para os Estados Unidos. A chama rebelde acesa por movimentos de contracultura, como os hippies,não passava então de uma pequena faísca se comparada à década anterior,mas ainda estava presente na memória de parte da população. Havia certo pessimismo no ar, em função da crise política que culminou com a renúncia de Richard Nixon, em 1974, e dos temores econômicos derivados das duas crises do petróleo, no início e no final da década. Existiam, portanto, condições objetivas para se questionarem os históricos valores norte-americanos, sem, contudo,um caldo cultural propício à contestação radicalizada. Com isso, abria-se espaço para soluções pessoais de vida,menos idealizadas, que permitissem aos cidadãos transformar a sua própria realidade– mudar a si sem ambicionar mudar o mundo, em resumo.

No mesmo documento no qual flagravam o nascimento da simplicidade voluntária, Elgin e Mitchell listavam seus cinco valores essenciais: Simplicidade material, propondo desapego aos bens e aos objetos e a busca de um maior equilíbrio entre aspectos materiais e não materiais da vida. As posses deveriam ser vistas como meros suportes ao crescimento humano, e não seus elementos centrais; “Escala humana”, que vinha a ser a rejeição ao gigantismo e à impessoalidade de instituições e ambientes de trabalho e convivência; Autodeterminação, referente à redução da dependência de grandes e complexas instituições, fossem elas públicas ou privadas, a fim de, nas palavras dos autores, “assumir maior controle do próprio destino”; Preocupação ambiental, reconhecendo a interdependência entre homem e natureza; e crescimento pessoal, livrando-se das influências externas para perseguir uma introspecção e subjetividade maiores.

Para acadêmicos que estudariam a SV nos anos seguintes, o princípio essencial do movimento e sua mais bem-acabada definição sempre foi o primeiro dos valores arrolados acima, por constituir uma negação explícita da chamada sociedade de consumo, além de guardar relação com todos os demais princípios listados em seguida. Princípio esse sempre acompanhado de um adendo aparentemente redundante, mas necessário: a SV era adotada por livre escolha, e não por limitações (como a pobreza) ou imposições externas (como a moral religiosa). Com efeito, uma das peculiaridades dos seguidores da SV era, justamente, fazer parte dos estratos mais afluentes da sociedade;a aceitação de seus preceitos costumava ocorrer entre pessoas com acesso a recursos como saúde e educação e provenientes de atividades profissionais bem remuneradas.

Se a origem dos adotantes da SV era semelhante, o nível de adesão aos princípios sempre apresentou gradações. Desde o princípio, identificou-se que havia uma categoria de adeptos “moderados”, dispostos a reduzir padrões de consumo sem,necessariamente, alterar sua estrutura de vida, até outra, mais radical, capaz de adotar uma “simplificação completa”,modificando não só hábitos de consumo,como atividade profissional e local de residência,também. A despeito dessa diferença,alguns costumes perpassam adeptos da SV de maneira geral, como abrir mão de objetos pouco utilizados, optar por produtos simples, com poucas funções e fáceis de consertar, e adotar uma alimentação mais saudável, não raro a partir de produtos orgânicos cultivado sem casa. Nota-se também a preferência pela redução da utilização do automóvel e a rejeição à televisão como meio de informação e entretenimento.

Mais recentemente, um dos fatores que impulsionaram o interesse dos estudiosos pela SV foi sua estreita relação comum campo de estudos em crescente evidência:aquele que relaciona bem-estar subjetivo com nível de materialismo e riqueza pessoal. Ciências Econômicas e Sociais acumularam, nos últimos anos, evidências empíricas de que, a partir de um determinado patamar de renda,maiores ganhos monetários não se traduzem em maiores níveis de felicidade, assim como elevados níveis de materialismo costumam ter como contrapartida menor satisfação com a vida. Dessa maneira, não só o arsenal de argumentos pró-SV acabou reforçado, como também a atenção às ideias de seus propagadores ganharam uma nova dimensão.

FORMAS DE INTERPRETAÇÃO

A SV é um fenômeno difícil de classificar. Seria ela uma contracultura? Em parte, sim, porque defende valores diferentes daqueles hegemônicos, predominantes. Mas duas evidências sugerem que essa definição talvez não lhe seja amais apropriada. A primeira, a de que seus princípios são genéricos em demasia para constituir um ideário consistente. A segunda, decorrente da primeira, é a de que esses princípios sequer são adotados de maneira uniforme, variando conforme cada simpatizante.

Além disso, o termo “contracultura” ficou consagrado por rotular movimentos contestatórios dos anos 1960 e 70,como hippies e punks; em ambos, seus membros seriam facilmente identificáveis pela maneira de trajar e pelos lugares que frequentavam. A SV não só não contém a carga de transgressão e desafio às normas dos grupos tidos como contra culturais,como pouco dispõe de espaços,reais ou virtuais, para reunião de seus dispersos adotantes. Uma contra cultura em que o rol de ideias é fluido e aberto, e na qual seus membros pouco interagem entre si, não parece merecedora dessa definição.

Por esse motivo, também se torna difícil classificar a SV como uma subcultura ou uma tribo. Estas presumem a existência de uma cultura própria, estranha à maioria, derivada do contato de pessoas que comungam de um mesmo propósito ou ideal. Não é, novamente, o caso.

Talvez a SV pudesse ser tratada como uma postura de vida outsider, ou seja,desviante, à margem. Howard Becker,em seu clássico Outsiders: estudos sobre a sociologia do desvio (Zahar,2008), aplica o termo outsider a grupos tão heterogêneos quanto usuários de maconha (foras da lei, em última análise) e músicos underground, que não atuam no circuito comercial – e que de transgressores às normas sociais não têm praticamente nada. Essa amplitude de classificação poderia servir bem à SV, muito embora a renúncia à afluência, a relativização da importância de construir uma carreira profissional e a disponibilidade de tempo livre não sejam elementos de fácil identificação em uma população heterogênea como a dos centros urbanos contemporâneos. Não são, por isso, tão marcantes e definidores da identidade social quanto uma atividade profissional específica ou a filiação a um movimento,partido ou o que quer que seja.

Ao contrário do que se poderia imaginar,a dificuldade de rotulagem da SV a partir de conceitos tradicionais das Ciências Sociais constitui uma de suas fortalezas. Trata-se de uma filosofia de vida flexível, negociada – ou “líquida”, para usar um termo em voga. Pouco normativa,baseia-se não em obrigações, e sim em recomendações, sugestões. Uma espécie de software aberto que acaba adaptado à realidade e à circunstância de quem se dispõe a conhecê-la. A SV é filha legítima da pluralidade moral e de estilos de vida dos tempos atuais. Foi dessa maneira, conforme escrevo em Por uma vida mais simples, que a SV habilitou-se “a circular com (...) desenvoltura pelos meandros de uma sociedade avessa a imposições. (...) Praticamente todo o discurso da vida simples mostra-se perfeitamente coadunado ao princípio da liberdade de escolha e do individualismo”(p. 205).

Aos ouvidos mais radicais, remanescentes saudosos dos efervescentes anos 60, essa flexibilidade da SV poderia parecer um sinal inequívoco de capitulação das gerações mais novas – ou até da sua própria – aos ditames do capitalismo e do mercado. De fato, a SV “critica o ‘sistema’,mas não o combate diretamente;não se propõe a alterá-lo, e sim ao indivíduo. Do ponto de vista político, poderia ser definida como uma estratégia adaptativa de vida, voltada a encontrar uma forma de se sentir confortável no mundo,e não de reformá-lo” (D’Angelo, 2015, p.205). Para quem lê adaptativa como sinônimo de conformada, vale lembrar que aquela constitui, provavelmente, “uma forma mais efetiva de resistência, uma vez que o maior temor do mainstream talvez não seja de que se ‘ocupe Wall Street’,e sim de que se enxergue vida fora da galáxia em que orbita. A descoberta (ou seria a criação?) de sentidos externos ao‘sistema’ é sua ameaça mais concreta e temível (...)” (p. 205-6). Certamente mais temível, por exemplo, do que as rebeldias de butique nas quais os movimentos sessentistas se transformaram.

Artigo originalmente publicado na Revista Sociologia, ed. 61, Dezembro/2016.

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