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(Não) Tomar o mundo feito coca-cola

Há anos estudiosos apontam que ter e ser são conceitos diferentes de existência do indivíduo e de sua interação como mundo, colocando em situações antagônicas“poder e posse” e “afetividade e sentimentos”.

A atitude inerente ao consumismo é a de engolir o mundo todo”,escreveu Erich Fromm. E quando o indivíduo renuncia a essa postura e opta pelo desfrute moderado dos benefícios da cultura material? Bem-vindo à simplicidade voluntária, filosofia de vida que rediscute a o posição ter e ser sob outro ponto de vista.

Certos conceitos formulados em áreas do conhecimento ultrapassam os muros científicos e ganham as ruas, tornando-se quase de domínio público. A Psicologia e a Psiquiatria estão repletas deles: “depressão”, “pânico” e “bipolaridade” são exemplos de um vocabulário que se popularizou nos últimos anos para, não raro, rotular fenômenos bastante diferentes daqueles consagrados na academia e na clínica. Muitos não lembram, mas outro clichê repetido com frequência pelo grande público tem origem no trabalho de um psicanalista alemão chamado Erich Fromm: a oposição entre ter e ser.

Fromm serviu-se dos conceitos de Karl Marx para, em meados da década de 1970, apontar que ter e ser constituíam dois modos diferentes de existência do indivíduo e de interação com o mundo. No primeiro, privilegiar-se-iam o poder, a posse e a superioridade sobre os demais; no segundo, os relacionamentos, a afetividade e o sentimento. A predominância de um ou de outro em um indivíduo ou sociedade não derivaria apenas de questões como personalidade e criação familiar, senão que do sistema econômico vigente. O capitalismo, evidentemente, seria o cenário ideal para a hegemonia do ter, o que ajuda a explicar o tributo de Fromm a Marx em sua elaboração teórica.

Na mesma época em que Fromm opunha ter e ser, norte-americanos de diversas regiões faziam sua opção pelo segundo. Ser, àquela época, significava renunciar aos apelos sedutores do capitalismo mais avançado do mundo em prol de uma vida menos dedicada ao trabalho e ao consumo, e mais ancorada no tempo livre e nos relacionamentos afetivos. Uma vida mais simples, em resumo.

Batizada de “simplicidade voluntária”, a escolha dessas pessoas refletia uma exaustão com o capitalismo norte-americano, exigente ao extremo quanto à saúde física e emocional de seus cidadãos, bem como a tentativa de inaugurar formas de viver menos materialistas. Deslocando do ter para o ser as fontes de contentamento, acreditava-se poder trilhar um caminho mais alcançável e democrático de felicidade e realização pessoal.

Quarenta anos depois do ter versus ser e da simplicidade voluntária terem ganhado os holofotes, cabe perguntar:que balanço é possível fazer de suas trajetórias? O antagonismo proposto por Fromm faz sentido de fato ou constitui um reducionismo grosseiro? Adotar uma vida mais simples, no sentido propugnado pelos pioneiros norte-americanos dos anos 70, é o caminho para uma existência mais plena e feliz? Aliás,o que se entende por felicidade atualmente? São essas questões que procuramos discutir.

Comprar e acumular

O ter versus ser de Erich Fromm avançou pelos anos 80, 90 e 2000. De um lado, foi abraçado pela parcela das Ciências Sociais interessada em temas ligados ao consumo e ao chamado“mundo dos bens“. Se, de acordo com Fromm, “eu sou = o que tenho e o que consumo”, para o antropólogo Russel Belk, emérito estudioso da cultura material, “(...) nós consideramos nossos pertences como partes de nós. Nós somos o que temos e possuímos”. Segundo Belk, aliás, nossos pertences ajudariam a desenvolver nosso senso de self, funcionando como sua extensão. Desse modo, se o self representaria a identidade do ser humano, o “eu”, a extensão do self constituiria também aquilo que pertence a cada um, ou seja,o “eu” e o “meu”.

De outro lado, a proposição de Fromm ganhou prosseguimento nas mãos de estudiosos do comportamento humano oriundos de disciplinas tão diversas quanto a Psicologia, a Economia e a Sociologia. Nas quase quatro décadas que separam a primeira edição de Ter ou Ser? dos dias de hoje consolidou-se um campo de pesquisas que procura estimar a influência do ter(ou seja, da afluência material) sobre o ser (a expressão de satisfação com avida e de estados de ânimo positivos). Nos círculos científicos, essa vertente de estudos desdobrou-se em duas: uma,de análise da relação entre renda e bem estar subjetivo (popularmente chamado de “felicidade”); outra, de avaliação do impacto da importância conferida às posses e do apego aos objetos (o chamado“materialismo”) em dimensões subjetivas da existência.

Na primeira vertente, um apanhado sintético permite afirmar que dinheiro e felicidade andam juntos, sim, mas só até determinado ponto. Quando se trata de deixar a pobreza e migrar para os estratos médios de uma sociedade, ou partir desses para chegar à riqueza, renda e bem-estar subjetivo caminham de mãos dadas. Aumentar rendimentos sem mudar de classe social, permanecendo em um patamar intermediário ou mesmo elevado, no entanto, não provoca majorações expressivas no quesito satisfação com a vida.

A explicação mais aceita para esse fenômeno é relativamente simples. Qualquer incremento de renda que permita a uma família deixar a pobreza é bem-vindo animicamente, uma vez que aumenta a distância para uma situação de vulnerabilidade. Em casos assim é o crescimento absoluto da receita individual ou familiar que se encarrega de promover maior bem-estar, ao passo que, uma vez instalados num patamar intermediário ou superior, a felicidade dependeria de elevações relativas dos ganhos econômicos. Isto é, o indivíduo precisa perceber-se avançando mais que seus pares, o que é notoriamente mais difícil de ocorrer. Nossa psique, quando se trata de dinheiro, seria mezzo absoluta,mezzo comparativa, portanto.

No caso do materialismo, repetidos estudos indicaram que aqueles que atribuem mais importância aos bens – e, por consequência, a eles se apegam com mais facilidade – costumam apresentar autoestima menor e ser menos felizes. O motivo? Especula-se que o materialismo decorra de uma insegurança individual, funcionando como compensação a uma privação vivida na infância. Porém, como na sociedade contemporânea as posições sociais são instáveis, e os julgamentos de valor, efêmeros, o materialismo seria incapaz de fornecer garantias emocionais perenes ao indivíduo, e mesmo de responder a quaisquer anseios mais profundos do ser humano – revelando-se, desse modo, uma solução pouco mais do que temporária ou ilusória para tal insegurança.

Contexto social

Todo esse processo não ocorreria sem a indispensável contribuição do contexto social, evidentemente. A exposição a uma cultura que valoriza o ter seria fundamental para internalizar princípios que associam o valor individual à conta bancária e aos bens de uso público, especialmente. Nesse cenário, para alguns especialistas, a televisão desempenharia papel primordial ao submeter o cidadão comum a padrões de comparação quase inatingíveis,como os dos personagens de suas obras de ficção e os das celebridades cuja vida se empenha em esquadrinhar. Numa sociedade pautada pelos meios de comunicação de massa, a comparação do sujeito comum não se faz mais com o vizinho ou o parente mais próximo, tão somente, e sim com uma infinidade de desconhecidos que volta e meia tomam de assalto as telas de televisores e computadores. Horas passadas em frente à TV, aliás, estão correlacionadas a gastos mensais mais elevados também, sugerindo que essa mídia, especialmente,é um impulso fundamental para fomentar o desejo de consumir.

Fromm provavelmente não se surpreenderia com esses resultados. Para ele, o capitalismo teria sido capaz de forjar nosso modo de enxergar o mundo– sempre a partir de uma perspectiva de posse e controle – e, por consequência,moldado até mesmo nosso vocabulário. Expressões banais do cotidiano,como “ter insônia”, “ter um problema”ou “ter um casamento feliz” refletiria messe modo de encarar a vida e a relação do indivíduo com o exterior. “Algumas décadas atrás”, escreveu Fromm, “em vez de ‘tenho um problema’, o paciente talvez dissesse ‘estou perturbado’; em vez de ‘tenho insônia’, diria ‘não posso dormir’; em vez de ‘tenho um casamento feliz’, diria ‘sou feliz no casamento’.” Mero preciosismo semântico? Não para o psicanalista alemão: “Ao dizer‘tenho um problema’, em vez de ‘estou perturbado’, a experiência subjetiva é eliminada. (...) Não posso ter um problema,porque problema não é uma coisa que possa ser possuída. (...) Esse modo de falar trai uma alienação inconsciente, oculta”.

O estranhamento que essa maneira de se relacionar com o mundo despertava em Fromm constituía, segundo o próprio, uma exceção; posturas irrefletidas de vida e alheias às construções sociais presentes no dia a dia seriam a regra. Ter como sinônimo de ser e ambos como pré-requisitos obrigatórios para o bem-estar subjetivo fariam parte, segundo ele, do caráter social dos integrantes da chamada “sociedade industrial”.

Simplicidade voluntária

A passagem da sociedade tradicional para a moderna constituiu uma conquista civilizatória repleta de benefícios, como mobilidade econômica,liberdade individual e avanço científico. A transição, porém, cobrou seu preço. Hierarquias fixas são menos estressantes que as móveis, nos lembra o professor Robert Lane. A insegurança é a cara-metade da ambição; para cada desejo de ascensão há um temor de queda. Evitar que essa incerteza paralise a vida constitui um dos desafios psíquicos contemporâneos.

Como, então, enfrentá-lo? O próprio Lane dá uma pista: favorecendo posturas que aumentem nossa sensação de autonomia, de controle sobre a própria vida. Para tanto, a conhecida indicação de não colocar todos os ovos em uma mesma cesta ressurge sob a recomendação de cultivar fontes de satisfação para além do dinheiro e das posses. Família, amigos, hobbies e distrações de todos os tipos são mananciais relativamente estáveis de contentamento e servem para atenuar a importância que carreira profissional,salários e preocupações materiais costumam ocupar na nossa mente.

Foi justamente por essa fresta que se esgueirou a simplicidade voluntária. Propondo que parte do consumo e da busca por aumento de renda e patrimônio fosse substituída por valorização do tempo livre, dos relacionamentos e da realização espiritual, ela incorporou à perfeição, desde os anos 70, o papel de uma filosofia de vida popular em que o ter cedia primazia ao ser.

Para não viajar tão longe no tempo,pode-se resumir que a simplicidade voluntária remonta a dois momentos do século XX. Primeiro, a 1936, quando Richard Gregg, discípulo de Mahatma Gandhi, cunhou a expressão em um pequeno livro publicado nos Estados Unidos. Nele, Gregg flagrava um mal--estar social proveniente da organização socioeconômica vigente, sugerindo aos cidadãos que procurassem reformá-la a partir de suas pequenas decisões diárias – consumo, trabalho,convivência comunitária etc.

Pouco se sabe da repercussão do ensaio de Gregg, a não ser que o termo “simplicidade voluntária” acabou vencendo o tempo a ponto de ser resgatado por dois pesquisadores norte-americanos em meados da década de 1970. Duane Elgin e Arnold Mitchell identificaram, à época, que contingentes crescentes de cidadãos optavam por modelos de vida menos apegados aos valores norte-americanos clássicos,como culto ao dinheiro, ao consumo e ao trabalho. Conterrâneos que,desiludidos com os rumos que o país e a própria vida vinham tomando naqueles tempos, optavam por empregos demeio período, reduziam o volume de compras nos shoppings e supermercados ou se mudavam para o interior, em busca de um refúgio distante do frenesi das metrópoles. Não havia estatísticas capazes de mensurar o fenômeno que os dois autores afirmavam estar ocorrendo, e talvez nem fosse possível ou desejável que houvesse; a Elgin e Mitchell parecia bastar o insight de flagrar o zeitgeist em movimento.

Opção de vida

Desde então, a simplicidade voluntária firmou-se no panorama social dos Estados Unidos e de outras nações, incluindo o Brasil, como uma opção de vida nem sempre fácil de ser caracterizada, visto que livre de regras ou prescrições rígidas, mas, ainda assim, expressiva em significados. Em última análise, dizer-se um simplifier– ou seja, um adepto da simplicidade voluntária – representa afirmar-se contrário ao pensamento hegemônico que vincula o ser ao ter nos moldes identificados por Fromm. Representa estabelecer um limite para os próprios desejos de posse e controle em prol de expectativas e vivências não apenas mais ajustadas à capacidade econômica individual, mas, principalmente,à saúde psíquica de cada um. Como bem afirma o neurocientista Peter Whybrow, referindo-se aos Estados Unidos, país no qual a simplicidade voluntária nasceu, há “um desequilíbrio(...) entre as demandas de nossa(...) cultura comercial e a biologia que herdamos. (...) [A] ansiedade e muito da enfermidade das quais os americanos sofrem hoje podem ser atribuídas a esse desequilíbrio cultural-biológico.(...) [A] maneira pela qual nós escolhemos conduzir nossas vidas tem nos adoecido”.

Atente-se para a última frase do excerto acima: a maneira pela qual escolhemos conduzir a vida. Ora, o desejo infinito de ter é um construto social, e não um dado natural. Por mais que o sistema sugira que não há limites para o querer (e nem para o realizar), a natureza os impõe, seja sob a forma de recursos ambientais não renováveis, seja sob as condições de funcionamento de nosso frágil aparelho emocional. Priorizar o ter não é destino, e sim opção assim como tentar domá-lo, conforme sugere a simplicidade voluntária.

Por esse motivo, ela configura um mecanismo de autorregulação dos desejos do sujeito, um guia de comportamento que propõe um contrato entre os diferentes selves do indivíduo: o ambicioso cede um pouco ao acomodado,o rigoroso ao flexível, o concreto ao relativista, o realizador ao contemplativo. Como toda forma de auto gerenciamento,não está imune a solavancos emocionais, questionamentos e até arrependimentos, visto que constitui uma tentativa de pacificação entre eus antagônicos. Caracteriza-se como uma forma de resposta do indivíduo ao meio,um movimento psíquico de adaptação à realidade externa e de auto transformação diante daquilo que ela apresenta.

Artigo originalmente publicado na Revista Psique - Ciência & Vida, nº 122.

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