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Mentiras inconvenientes

Os casos da sorvetes Diletto e da sucos Do Bem servem para dar razão àqueles que igualam marketing a farsa

Matéria publicada na última edição de EXAME revelou certas “verdades inconvenientes” sobre algumas marcas bastante conhecidas, duas delas do Brasil. Na intenção de estabelecer diferenciais que as permitissem se destacar das concorrentes ou simplesmente cobrar mais caro pelo que vendem, algumas companhias criaram histórias a respeito da procedência dos seus produtos ou das suas próprias origens. Histórias essas vendidas como verdadeiras aos consumidores, mas que, na prática, não passam de fantasias – ou mentiras, para usar um dos termos empregados na reportagem (leia a matéria completa aqui).

No caso brasileiro, dois casos são mencionados: o dos picolés Diletto e o dos sucos Do Bem. O primeiro diz originar-se do avô italiano do fundador, um antigo vendedor de sorvetes em São Paulo. O segundo afirma que a matéria-prima de seus produtos vêm de uma pequena e isolada fazendo do interior. Nenhuma das histórias procede; foram criadas para dar um toque especial à comunicação dos dois produtos.

O que esses episódios podem nos ensinar?

Primeiro, eles dão razão a pensadores como o falecido Jean Baudrillard e o sociológo americano Richard Sennett, que entendem a nossa época como a do predomínio da imagem sobre a utilidade. Consumir não diz apenas respeito a suprir necessidades práticas, concretas, como também, e principalmente, a preencher vazios simbólicos, subjetivos. Sennett lembra que, por razões de custo e logística, os carros compartilham plataformas de produção idênticas, reservando boa parte da diferenciação dos modelos unicamente à publicidade. O mesmo pode-se dizer de muitos eletrônicos e eletrodomésticos: marcas das mais diversas têm em comum o fato de contratarem a produção de um mesmo conjunto de fabricantes chineses.

O segundo e, a meu ver, mais importante, diz respeito aos limites éticos do marketing. Historicamente a atividade convive com questionamentos dessa ordem, sendo acusada de manipuladora e invasiva. Parte das críticas perde o sentido quando se examina que grande parte dos recursos retóricos dos quais o marketing faz uso não lhe são exclusivos: fazem parte da comunicação humana. O apelo emocional, o realce aos aspectos positivos, a tentativa de convencimento – tudo isso está presente em qualquer interação entre duas ou mais partes.

Nesse sentido, até mesmo o exagero, sob a forma da idealização e da ritualização de situações banais do dia a dia, recursos comuns na publicidade, são toleráveis. Afinal, fazem parte do esforço de tornar a mensagem interessante e não chegam a ludibriar o consumidor, devidamente alertado de seu caráter estilizado, ficcional.

Os casos da Diletto e da Do Bem, no entanto, saem dessa linha. Não são exageros; são invenções. Invenções que, em tese, embora não impactem a experiência com os produtos, contribuem para emprestar-lhes credibilidade e atratividade. Mas não apenas isso: são invenções vendidas como verdades, uma vez que, ao consumidor, não é oferecida a oportunidade de interpretá-las como ficção ou exagero. Mentiras, em resumo.

Graves? Nem tanto. Diríamos “didáticas”. Elas servem para mostrar quão tênue pode ser a linha que separa a boa prática do marketing da mais pura balela, e, infelizmente, a dar razão àqueles que, propositada ou inadvertidamente, sempre atribuíram à palavra o sinônimo de farsa. Aos profissionais do setor resta a alternativa de, no seu dia a dia, desmentir tal estereótipo, lembrando que, tal qual a medicina, o direito e a engenharia, o marketing não é em si ético ou antiético; é neutro. Quem o utiliza é que pode fazê-lo de uma maneira ou outra, e a eles deve ser direcionada a nossa crítica.

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