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Ensaio sobre a leveza

O que Salvador Allende e Pablo Neruda tinham em comum, além da nacionalidade?

Em "La Chascona", museu em memória de Pablo Neruda localizado em Santiago, há afixado em uma das paredes um breve poema do autor chileno sobre as virtudes da leveza. Não a leveza do corpo, fique claro, mas sim a de espírito. O poema faz um elogio à frivolidade e a todas as coisas aparentemente menores da vida - mas que, inegavelmente, são capazes de lhe conferir colorido. Sábio que era, Neruda reconhecia que temas áridos e profundos podiam render teorias, avanços científicos e até boa literatura, mas que a verdadeira graça em viver está em águas bem mais rasas e superfícies menos ásperas.

Infelizmente, não encontrei em nenhuma antologia o poema de Neruda, e sequer fui capaz de memorizar um ou dois de seus versos. Mas o impacto positivo que me causou permaneceu. Se a futilidade excessiva é um mal, a gravidade extrema tampouco constitui virtude. O prazer derivado da frivolidade é uma prerrogativa para o bem-estar. O filósofo Gilles Lipovetsky, um estudioso da sociedade contemporânea, é bastante claro sobre isso: "(...) a facilidade, a superficialidade, a frivolidade, não são ruins. A felicidade implica uma ligação com a leveza; quando somos felizes, somos leves" (revista Cult, dezembro de 2007).

Por isso, não chega a surpreender que até mesmo personalidades cujas vidas pautaram-se por uma seriedade insuspeita compartilhem do gosto por pequenas extravagâncias mundanas. Che Guevara, por exemplo, foi morto com um Rolex no pulso, e o papa Bento 16 não dispensa certos acessórios da Prada em seu visual.

Che, por sinal, tinha com quem aprender. O ex-presidente Salvador Allende, conterrâneo de Neruda e companheiro do guerrilheiro em seu sonho socialista, também era um entusiasta das coisas leves da vida. Segundo Max Marambio, no livro "Las armas de ayer" (editora La Tercera), Allende tinha um "lado frívolo maravilhoso. Gostava de boas roupas" a ponto de ser "um perigo entrar em seu escritório com uma gravata bonita. ‘Essa é presidencial', dizia, e desprovia seu convidado de seu objeto sem constrangimentos". Marambio arremata, com a autoridade de quem, como chefe da escolta presidencial, acompanhou Allende de perto por vários anos: "seus gostos refinados o afastavam da cultura popular com a qual tinha que lidar a cada passo em suas campanhas eleitorais".

A leveza frívola exaltada por Neruda, no fundo, é uma singela prova de humanidade. Dedicar (ou aparentar dedicar) sua vida a ela pode ser, realmente, digno de reprovação, como bem percebeu Maria Antonieta, rainha francesa mandada à guilhotina pelas hordas enfurecidas da Revolução de 1789. Mas servir-se de suas benesses em nome de alguns prazeres está longe de ser um crime - como bem comprovam guerrilheiros, papas, poetas e presidentes.

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