top of page

Só Freud explica? O caso e o ocaso da política argentina

O apelo à ciência da mente ajudaria a decifrar o enigma do país vizinho


A comparação pode ser a morte da alegria, como dizia Mark Twain, ou uma fonte de alívio e consolo. Basta aos brasileiros observar a situação da Argentina, cujo novo presidente assume neste domingo com inflação superior a 140% ao ano, mais de um terço da população na pobreza e 21% de desemprego entre os jovens. Javier Milei daria um rim – ou o venderia, se quisesse ser fiel a seus princípios – para contar em seu país com os avanços institucionais que o Brasil logrou desde a redemocratização.


Estabilidade da moeda, programas assistenciais consolidados, tripé macroeconômico, políticas afirmativas e lei de acesso à informação, entre outros, são produtos da concertación brasileira dos últimos 40 anos que já não se ousa desafiar sob risco de punição nas urnas ou de repúdio da opinião pública. Por convicção sincera ou conveniência política, tornaram-se pilares razoavelmente firmes da vida nacional, e sobre os quais, espera-se, um país melhor deverá ser erigido.


Costuma-se enaltecer a possibilidade de divergência que a democracia e o debate público oferecem, mas pouco a de, por meio deles, chegar a consensos mínimos. São estes que preparam o terreno para a construção da prosperidade e garantem a estabilidade essencial que o desenvolvimento requer. Cada qual a seu modo, foi assim no Chile pós-Pinochet, no Brasil a partir de 1985 e, mais recentemente, no Uruguai – mas não na Argentina.


O fracasso vizinho desafia explicações. Desde as clássicas, como a do “pecado original”, que atribui todo o malogro sul-americano à colonização exploratória, consagrada no panfleto As Veias Abertas da América Latina (LP&M), de Eduardo Galeano, até outras, muito em moda em meados do século passado, que entendiam o subdesenvolvimento local como resultado da subordinação econômica aos países industrializados – caso da escola cepalina e da Teoria da Dependência, de Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto.


Desmente ainda uma hipótese mais recente que imputa aos traços culturais legados por Espanha e Portugal a raiz dos infortúnios sudacas. Basta ler O Atroz Encanto de Ser Argentino (editora Bei), ensaio de Marcus Aguinis sobre o caráter de seus compatriotas, para enxergar o Brasil ali retratado: corrupção, baixo capital cívico, desconfiança em relação ao abstrato e ao impessoal, primado do interesse individual sobre o coletivo. O Brasil, contudo, lentamente avançou, enquanto a Argentina insinua-se um caso insolúvel.


Aqui, cabem um esclarecimento e uma especulação. Consensos sugerem unanimidades, quando na verdade são o produto de disputas que arbitram vencedores e perdedores. À medida que se provam eficazes, tornam politicamente custoso aos derrotados desafiá-los, obrigando o reconhecimento do mérito alheio e a assunção de novas pautas. O Chile democrático foi construído sobre as bases econômicas da ditadura e de um sistema político que excluía forças minoritárias. O PT boicotou a Constituição, o Real e as privatizações, mas teve de aceitá-los; a direita, que torcia o nariz para cotas e programas sociais, já não cogita encerrá-los. Saber perder e reformar as próprias bandeiras é parte do jogo, mas os aguerridos argentinos, sempre prontos para greves e panelaços, não parecem capazes de tamanho desprendimento.


Na edição de novembro da revista Piauí, Vladimir Safatle insurge-se contra a utilização de conceitos oriundos da psicologia, como “ressentimento”, “regressão” e “pulsão de morte”, para descrever a recente opção por líderes extremistas em alguns países. Mas quando história e cultura não são suficientes para compreender um fenômeno, o que de mais profundo pode-se evocar para explicá-lo?


O apelo à ciência da mente talvez seja o que resta para decifrar o enigma argentino, e para o qual os vizinhos mais estejam preparados. Buenos Aires é um dos polos da psicanálise mundial e, diz-se, em nenhum outro lugar no mundo há tantos discípulos de Freud por habitante.


Difícil será convergir num diagnóstico, uma vez que as correntes psicanalíticas são tão numerosas quanto as peronistas.


Artigo originalmente publicado no caderno DOC, de Zero Hora, em 09 de dezembro de 2023.




bottom of page