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O novo posicionamento?

Marcas enfrentam o dilema de escolher um lado no debate público e experimentam a invasão do cotidiano corporativo pelas pautas das redes sociais


Talvez daqui a alguns anos, quando lançar a enésima edição de seu clássico livro-texto de fundamentos do marketing, o guru Philip Kotler seja obrigado a ir além das mudanças cosméticas com as quais está habituado a presentear seus leitores a cada década e tenha de reescrever boa parte do capítulo relativo ao conceito de posicionamento. E, nele, à consagrada definição de como uma marca gostaria de ser lembrada pelo consumidor, vigente desde os anos 1970, quem sabe acrescente outra, nascida nos tempos que correm: a de escolher um lado – ou “posição” – em relação a temas sociais candentes.


Não sem motivo. Desde o início da década passada, com as redes sociais, o debate público foi tomado de assalto pelo...público – ou, ao menos, por aquela parcela que faz uso intensivo de Facebook, Twitter, Instagram e ferramentas afins. Por consequência, temas antes restritos a grupos de interesse muito específicos, como as chamadas pautas identitárias, passaram a movimentar controvérsias online e, por tabela, o agenda-setting da mídia tradicional. Daí para respingarem no universo corporativo foi um pulo, estimulando que as empresas tomassem partido sobre assuntos alheios às preocupações organizacionais stricto sensu. O acirramento das disputas político-eleitorais, em especial no Brasil e nos Estados Unidos, completou o cenário, ao vincular todo o tipo de questão, fosse ela ideológica ou comportamental, a preferências partidárias e candidaturas.


Já houve, assim, marca que renomeou produtos para torná-los mais inclusivos e menos discriminatórios (a Suvinil, que aboliu a expressão “cor de pele” de suas tintas); que tornou seus produtos mais fáceis de usar por pessoas com deficiência física (Rexona, Brastemp); que se dispôs a custear viagens para facilitar o aborto legal para suas funcionárias, nos EUA (Disney, Apple, Microsoft); que contemplou todas as orientações sexuais em suas campanhas publicitárias (Boticário, Natura); que defendeu o voto consciente nas eleições (Burger King, Votorantim, Chevrolet e Patagonia); que lançou bonecos sem gênero (Mattel, fabricante da Barbie); que passou a subsidiar a transição de gênero de seus funcionários (Mercado Livre, Kraft Heinz, Mondelez); e que abriu programa de trainee única e exclusivamente para afrodescendentes (Magazine Luiza), para ficar em alguns exemplos. Todos os casos, naturalmente, ganharam notoriedade e contribuíram, positiva ou negativamente, para a imagem das companhias, a depender do target.


Sim, pois por mais meritórias que aparentem ser as decisões acima, nem todas foram bem-recebidas, seja por abordarem conteúdos facilmente associáveis a um dos lados no espectro ideológico, seja por tocarem em questões morais historicamente sensíveis. E a divisão de opiniões que se observa na sociedade acabou transferida para o consumo, no qual escolher ou boicotar uma marca tornou-se uma opção potencialmente “política” lato sensu.


A não ser que haja um improvável refluxo desse movimento, nos próximos anos executivos terão de se habituar a gerenciar marcas como a uma casa de vidro sob permanente observação e escrutínio externo. E a perceber que a velha ideia em marketing de que “tudo comunica” – ou seja, que produto, preço, ponto de venda, atendimento ao cliente etc. podem emitir pequenos ou grandes sinais para os consumidores, tornando-se motivo de contentamento ou indignação - vale em dobro numa sociedade hiperconectada. Repare que, entre os exemplos citados no terceiro parágrafo, alguns dizem respeito à política de recursos humanos das companhias, outrora matéria de economia interna - mas que, hoje, submete-se também aos ditames do branding (no caso, do employer branding). A propaganda tradicional cobre apenas uma parte da história que uma marca quer contar a seu respeito; a outra vem das redes sociais, produzida por ela ou por terceiros.


Terceiros esses que não podem ser tomados como o todo da sociedade, diga-se de passagem. Como sói acontecer quando tópicos delicados estão em discussão, uma minoria engajada e barulhenta se faz parecer maioria, enquanto esta, silenciosa, provavelmente sequer se interessa por boa parte dos assuntos que superlotam a web. O efeito de desinibição online – nome que os pesquisadores dão ao comportamento exagerado de muitos internautas – sugere que um fervor religioso permeia a sociedade, quando na verdade é característico apenas de alguns grupos, mais ou menos organizados, a depender do que está em jogo. Assim, não se posicionar espontaneamente – no sentido de se comprometer com questões que animam o debate digital – pode parecer uma decisão antiquada, mas ainda aceitável, visto que prudente mercadologicamente. Ressalte-se o “ainda”: convenções sociais e tabus começam a cair quando uma militância diminuta se mobiliza, e terminam por desabar quando a adesão crescente a torna corrente majoritária. Com os movimentos atuais não deve ser diferente; a decisão que cabe aos profissionais de marketing, atualmente, tem mais a ver entre ser pioneiro ou seguidor.


Se levantar bandeiras não é uma obrigação, fazê-lo, por outro lado, não isenta as marcas de avaliações típicas do branding: a da causa defendida e a da própria marca. Deve haver um mínimo de coerência entre ambos para que ocorra um match natural. Há pautas que confortam e são unanimemente bem-aceitas, seja por convicção individual ou conveniência social, e há as que provocam atrito e faísca. Famílias negras têm estrelado comerciais dos supermercados Zaffari, por exemplo, mas não se vê casais homossexuais neles. A Coca-Cola, de sua parte, já produziu filmes em que sua mascote, o urso polar branco, ganha a companhia de outros, de diferentes cores, e se permitiu uma brincadeira com uma gíria LGBT nas latinhas de seu refrigerante carro-chefe: “Essa Coca-Cola é Fanta, e daí?”. Em ambos os casos, o DNA de cada marca pareceu respeitado. O “conhece-te a ti mesmo” nunca foi tão necessário ao branding.


Não fosse assim e a decisão da Nike de tornar o jogador de futebol americano Colin Kaepernick seu garoto-propaganda teria surpreendido muita gente. Famoso seis anos atrás por ter se ajoelhado durante a execução do hino nacional antes de uma partida, em protesto contra o racismo no país, o uso de Kaepernick nos comerciais da Nike fez muitos estado-unidenses mais patrióticos proporem um boicote à marca, enquanto esta aproveitava para reforçar sua imagem de contestadora do status quo. Se um dos pilares do posicionamento é a distinção – isto é, afirmar algo diferente daquilo que concorrentes afirmam -, certa dose de ousadia pode ser uma boa tática, especialmente para novatas que queiram chamar a atenção.


Para além das implicações gerenciais, o que esse “ativismo” das marcas representa? A julgar pelo histórico de alguns temas que se tornaram caros ao universo empresarial, trata-se de um avanço evidente rumo a uma realidade mais inclusiva e democrática, conquanto limitado - ao menos para aqueles apetites mais reformistas (ou revolucionários). Toda vez que companhias privadas se mostraram permeáveis às demandas sociais externas, as assimilaram à sua maneira: burocratizando-as (isto é, inserindo-as dentro de uma lógica organizacional típica, com manuais, processos, certificações e cargos) e despolitizando-as (retirando seu significado mais profundo). Foi assim, por exemplo, com a responsabilidade social, transformada em caridade patrocinada, e com a sustentabilidade ambiental, convertida em mitigação de danos (e, ambas, em propaganda, evidentemente): nenhuma colocou em discussão modelos de desenvolvimento, distribuição de riquezas ou inserção social, e pouco ou nada dialogou com o poder público. Entraram no checklist e pronto.


Atualmente, à medida que surgem departamentos voltados à inclusão e à diversidade, “diretores de propósito” e consultorias cuja missão é apontar os melhores investimentos de impacto social, a profecia cumpre-se novamente: o sistema muda para ficar igual. E dá razão àqueles que veem a disposição em abraçar temáticas de teores variados tão somente como diversionismo frente a movimentos contestatórios que pipocaram pelo mundo no rescaldo da crise econômica de 2008. Uma forma relativamente barata de sossegar pretensões mais radicais por meio de concessões convenientes.


Por isso, ao contrário do que muitos afirmam, não se deve enxergar o fenômeno como uma derrota de Milton Friedman e de seu postulado de que a única missão das corporações é gerar lucro. Trata-se, ao contrário, de sua vitória. A apropriação de questões de natureza política e social por companhias privadas sinaliza o enfraquecimento do papel desempenhado por instituições tradicionais, como a família, a Igreja e o Estado, na mediação de demandas coletivas, e a imposição do capitalismo como sistema totalizante: mais do que a ordem econômica, ele engendra o imaginário coletivo.


Sabe-se que empresas repudiam a regulamentação estatal, mas submetem-se, por questões de sobrevivência, à opinião pública, que nada mais é do que um livre mercado de ideias, tão afeito ao ideal liberal. E se antes eram acusadas de fazer transbordar sua lógica de eficiência, produtividade e resultadismo para fora de seus domínios, veem-se agora às voltas com o oposto: a politização – novamente, em sentido amplo – de aspectos antes tidos como triviais do seu dia a dia: o produto que fabricam, os atores que escalam para um comercial, a forma como recrutam funcionários. A absorção de reclamos desse tipo é um sinal da vitalidade de sua proverbial capacidade de adaptação.


Daí a frustração de um esquerdista old school como o ex-presidente uruguaio José Mujica, ao afirmar que “não dá para acreditar no grau de domesticação que a mercadoria nos impôs. Tiramos muita gente da pobreza extrema, mas não os tornamos cidadão: os tornamos consumidores melhores” (Uol, 12/08/2020). Melhores e mais exigentes, pode-se completar, conferindo razão ao sociólogo britânico Anthony Giddens, que vê no consumo um poderoso instrumento de reflexividade social – ou seja, de exame crítico permanente das tradições e das práticas sociais como um todo.


Do contrário, não haveria explicação para a emoção de um consumidor negro que encontrou na farmácia um curativo com a cor de sua pele, conforme noticiado há três anos, nem para os maus bocados pelos quais passam confecções acusadas de esteticamente excludentes, como Victoria’s Secrets e Abercrombie & Fitch, ou sequer para a iniciativa de jovens que colaram as suas próprias fotografias em um pôster publicitário do McDonald’s, reivindicando maior representatividade. Os melhores consumidores a que Mujica se referiu tornaram-se, sim, melhores cidadãos, mas não sob a forma que alguns ideólogos saudosistas ambicionavam, e sim à maneira contemporânea - conformista ou realista, a depender do olhar -, de quem reivindica um lugar no firmamento simbólico capitalista.


Tanto que ofereceram ao cercadinho corporativo um choque de realidade. Acostumados a segmentar consumidores por idade e classe social, e a se vangloriar de imersões pretensamente antropológicas no dia a dia de seus targets para conhecê-los a fundo, executivos de marketing descobriram que o mundo é maior que suas baias e salas. As “redes sociais revelaram o que interessa ao povo”, disse o cientista político Fernando Schüler em entrevista à AMANHÃ. Embora frequentemente definidas como “bolhas”, elas costumam ser muitíssimo mais diversas e democráticas do que qualquer departamento de marketing por aí. Empresas viram-se então submetidas a uma espécie de etnografia às avessas, em que o objeto de estudo invadiu o território do pesquisador para arremessar-lhe na cara a realidade: questões de gênero, raça, sexualidade, imagem corporal, direitos reprodutivos e limitações físicas importam.


Importarão para sempre? Em termos. O mais provável é que sejam incorporadas pelas empresas ao rol de obrigações com as quais lidam no dia a dia, especialmente em seus códigos de conduta e compliance, nas suas políticas de recursos humanos e ações de marketing. E, nestas últimas, o grau com que serão exploradas dependerá do espírito do tempo e da identidade pretendida para as marcas. Ensina David Aacker, um dos principais especialistas em branding do mundo:


“Cada marca precisa ter entre 6 e 12 elementos que ajudem a definir sua identidade. A partir disso, é possível fazer uma depuração para 3 ou 4 elementos mais importantes. Conforme a empresa evolui, algumas características que não eram tão importantes passam a se tornar mais relevantes – por isso, é necessário ter esses 12 elementos. (...) [C]aracterísticas (...) menos importantes de início (...), mais adiante podem ser justamente (...) aspectos que vão ajudar a empresa a se diferenciar”.


Quanto mais abrangentes os elementos mencionados por Aacker, mais aptos a capturar os signos em voga. A real beleza proposta pela Dove, originalmente concebida para valorizar diferentes formatos de corpos, hoje pode contemplar cores de pele, tipos de cabelo e deficiências físicas. O desafio às regras que sempre caracterizou a Nike, e que no início restringia-se à esfera esportiva, evoluiu para o apoio a seus garotos-propaganda metidos em escândalos pessoais – o adultério de Tiger Woods, a noitada de Ronaldo Nazário com travestis -, e hoje abraça um esportista que, em nome de uma causa nobre, mexeu com os brios cívicos da nação mais ufanista do mundo. Coerência, consistência, congruência – dê-se o nome que quiser, esses casos retratam que branding bem-feito é assim: sólido porque moldável ao zeitgeist.


E disso Kotler está dispensado de nos lembrar.


Artigo originalmente publicado na coluna Sr. Consumidor, Revista Amanhã, ed.342.





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