Fora de Controle
- André D'Angelo
- 4 de abr.
- 2 min de leitura
Interpretação é a palavra final da obra artística, inclusive daquela produzida por máquinas
Em uma cena do documentário “Foge-me ao controle” (2024), que trata de sua vida, Fernanda Young (1970-2019) aparece em um programa de TV recitando a letra da canção “Os Cegos do Castelo”. A cada verso, Fernanda emociona-se mais, a ponto de, em determinado momento, não conseguir continuar com a leitura – aos prantos e debruçada sobre os joelhos, a escritora perde a fala. A poesia, sabe-se, nem é dela, e sim de Nando Reis, mas sua identificação com as palavras tocara-lhe tão fundo que pareciam saídas de sua lavra ou compostas em seu tributo.
Méritos do letrista ou liberdade interpretativa da leitora? As duas coisas. Criar imagens para refletir situações, sentimentos e opiniões pessoais exige certa abstração que, a exemplo de roupas tamanho GG, podem não vestir perfeitamente, mas são capazes de cobrir todos os corpos - e, com alguns ajustes, até parecer sob medida. Provavelmente se você ou eu formos à letra de “Cegos do Castelo”, encontraremos motivos para vermo-nos refletidos nela também. Basta um pouco de boa vontade.
Se a última etapa de todo processo artístico cabe ao leitor, ouvinte ou observador, não deveria surpreender que poemas gerados pelo ChatGPT, o software de Inteligência Artificial (IA) mais popular do mundo, sejam confundidos com aqueles redigidos por versadores americanos famosos, conforme mostrou experimento realizado nos Estados Unidos recentemente (O Globo, 17/11/24). E, nos casos em que pareciam mais compreensíveis que os textos humanos, recebessem a preferência dos participantes do estudo.
Antes dos lamentos de praxe, sejamos otimistas com essas descobertas. Se, por um lado, desilude constatar que aquilo pelo qual alguém nutriu simpatia estética foi gerado por uma máquina, por outro pode representar potência: a prerrogativa criadora do receptor continua preservada, e a fruição, ao menos em tese, não deveria sofrer prejuízo algum. É na obra que reside a força, não no autor.
Além disso, IAs criam a partir de bases de dados formadas por produções humanas, tanto quanto... humanos o fazem, quando acessam a própria memória ou dão vazão ao inconsciente. Difere a velocidade de um e de outro, claro, mas o trabalho é essencialmente o mesmo.
Em um futuro nem tão distante, os melhores escritores, compositores e pintores serão aqueles que conseguirem produzir a partir de referências que nem as mais potentes tecnologias igualem. E a competição consigo mesmo, da qual os criativos gostam tanto de se gabar, será suplantada por aquela contra os databases constantemente alimentados desses sistemas. Finalmente, quem sabe descubramos ainda que, assim como artistas têm estilos, diferentes IAs também; já se flagrou que, para temas políticos, por exemplo, as respostas do ChatGPT são mais direitistas, e as do Gemini, esquerdistas (El País Espanha, 28/11/24).
Tempos atrás, num podcast, Lulu Santos deparou-se com a clássica bajulação da entrevistadora:
- Suas músicas cabem em qualquer momento da nossa vida!
Ao que o compositor respondeu, quase rindo:
- Como horóscopo, né?
Lulu não é o maior hitmaker do país à toa.
Artigo originalmente publicado na edição de abril do jornal literário Sarau, de Santa Cruz do Sul
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