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Feita para não fazer

“Crescei-vos e burocratizai-vos” não é nenhum princípio bíblico, mas parece um dogma tão poderoso que nem a Igreja Católica escapou de obedecê-lo à risca. Pouco depois de se tornar papa, Jorge Bergoglio deu declarações de reprovação à quantidade de agências, instâncias de decisão e grupos de trabalho entronizados na corporação de Deus e que, para seu lamento, a estavam afastando de seu propósito milenar: evangelizar.


Quisesse discutir o assunto mais a fundo, Francisco poderia ter como interlocutora uma ala do Partido dos Trabalhadores (PT), que anos atrás divulgou documento interno criticando a “estrutura que [...] acaba por buscar mais soluções para o confronto entre as correntes e tendências do que as necessidades dos trabalhadores”. Sem falar das “reuniões que começam e terminam em si mesmas, atividades sem objetivos claros e [com] dificuldades para avaliar resultados reais” (Carta Capital, 21/10/2020). Se duas entidades tão díspares padecem do mesmo mal, é porque, tal qual uma força estranha imparável, ele não poupa mesmo ninguém.


Crescer é passar por crises, como bem sabem aqueles que já fizeram a travessia da infância para a adolescência e, desta, para a vida adulta. Nas organizações, não é diferente. À medida que evoluem, elas adicionam ou subtraem mecanismos a fim de responder aos desafios do momento e a solucionar os incômodos da hora. O problema é que a resposta a cada tensão contém em seu cerne a semente da próxima, como sugere o clássico modelo de Larry E. Greiner, publicado em 1972 (veja gráfico adaptado). Assim, se a falta de liderança se soluciona com direção, dela nascerão as agruras do excesso de autonomia; se a resposta a esta for a delegação, os problemas passarão a ser de controle, e assim sucessivamente. A burocracia é o penúltimo remédio-veneno ministrado por gestores: cura a falta de supervisão, mas ganha vida própria ao confundir meios e fins, processos e resultados, interesses pessoais e coletivos. E, embora Greiner não aponte esta como a crise mais duradoura, a se julgar pelo que se lê e ouve a respeito de pesos pesados do mundo dos negócios, ela nunca é breve ou fácil de ultrapassar.


Por quê?


É possível especular. Primeiro, porque a burocracia oferece previsibilidade e sensação de ordem. Tudo o que retira de resolutividade, proporciona de cautela. Sentimo-nos mais tranquilos por respeitar procedimentos, etapas e hierarquias, pois representam ponderação. Segundo, porque fornece uma “racionalidade de referência”, expressão criada pelo sociólogo e executivo francês Christian Morel para designar o parâmetro pelo qual são guiadas as decisões em dado contexto. A mera instauração de certos processos e funções sugere a existência de uma lógica ou crença subjacente, cujo sentido deixa de ser questionado com o passar do tempo. Terceiro: a inércia é uma força poderosa. Conservar as coisas como estão constitui a primeira e mais confortável escolha diante de um impasse, pois, em última análise, estabilidade significa segurança e proteção contra o novo, este desconhecido. E, finalmente, o mais perigoso dos motivos, posto que sintoma de corrupção do mindset (quando não da alma) do mais importante capital de uma organização, o humano: render-se à burocracia é uma forma de se eximir de refletir e decidir, transferindo a uma alçada impessoal e intangível a responsabilidade: “está no manual”.


AS CINCO FASES DO CRESCIMENTO

Traduzido de: GREINER, Larry E. “Evolution and Revolution as Organizations Grow”. Harvard Business Review, v.50, i. 4, Jul-Aug. 1972.

Embora paradoxal, uma maneira efetiva de combater a burocracia está em estabelecer limites formais para sua progressão. Ou, em outras palavras, criar uma espécie de “burocracia preventiva”. Assim, pode-se pactuar que a cada introdução de uma nova verificação, regra, norma, instância de decisão ou reunião periódica, seja obrigatório excluir outra, já existente. Tal qual muita gente faz para não abarrotar o guarda-roupa: para toda peça que entra, uma antiga deve sair. Pode-se também fixar uma data anual para que os principais procedimentos, cargos e incumbências existentes sejam revistos, em um paralelo com o orçamento base zero. Este projeta custos e despesas vindouros não em relação ao exercício passado ou atual, mas frente às necessidades reais de cada atividade e setor, submetidos a um pente-fino periódico.


Uma última possibilidade é lançar mão de expedientes informais, mas que, usados repetidamente, acabam incorporados à cultura organizacional a ponto de parecerem lei interna. Três sugestões inspiradas no modus operandi da varejista digital Amazon podem ajudar. Primeiro, o prêmio “Just Do It”, outorgado àqueles colaboradores que tomam a iniciativa de resolver problemas ou conduzir assuntos fora de sua atribuição, mesmo com resultados negativos. Outra é o princípio “discorde e se comprometa”, para quem diverge de um colega ou procedimento, e oferece uma alternativa não prevista. Se esta se provar efetiva, pode redundar na derrubada de um trâmite desnecessário. E, por último, o mandamento das duas pizzas: o número de participantes de qualquer reunião deve ser perfeitamente alimentável com duas pizzas – um suprimento adicional de comida significa que há gente demais na mesa.


A burocracia é necessária, quiçá inevitável. Sua má fama decorre de facilmente assumir a forma de um “U” invertido; a partir de dado momento, deixa de proporcionar benefícios e passa a se tornar disfuncional, um verdadeiro fim em si mesma. Incorporada à paisagem organizacional, confunde-se com as exigências realmente incontornáveis ao aumento de complexidade das grandes instituições. Por isso, cabe sempre relembrar o alerta de Peter Drucker: há o crescimento saudável, a gordura e o câncer – e a diferença entre eles nem sempre é visível a olho nu.


Artigo orginalmente publicado na coluna Sr. Consumidor, da Revista Amanhã, ed.344.


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